Apresentando Nobert Elias (Breslau, Alemanha 22/06/1897 faleceu 01/08/1990)
Ainda que sua obra tenha recebido atenção a partir da década de 1970, Nobert Elias é hoje considerado um dos mais importantes pensadores do século XX.
A partir de um intenso diálogo com a história da cultura. Elias situa os diferentes padrões de relações sociais nos seus devidos contextos históricos e culturais. Assim como Simmel, enfatiza a importância das interações. Para ele, a vida em sociedade é composta de padrões gerados nas interações entre indivíduos ligados por uma relação de interdependência.
Seu livro " O processo civilizador (1939) foi ignorado até ser traduzido para o inglês em 1969, é hoje um grande clássico da sociologia. Em 2 volumes, a obra mapeia historicamente os comportamentos e os hábitos europeus, procurando entender como as atividades individuais são moldadas por atitudes sociais. Num diálogo com a psicanalise de Freud, Elias pensou sociologicamente o desenvolvimento do autocontrole e de sentimentos como a vergonha e a repugnância, de modo a traçar uma história e uma sociologia da ideia de civilização gerada pela Idade Moderna. Além de O processo civilizador escreveu outros trabalhos de grande destaque, como por exemplo: A sociedade de corte (1969), O que é sociologia(1970) e a Sociedades dos indivíduos (1987).
Um novo pensador nos ajudará a interpretar que caminhos foram percorridos até que se estabelecesse o modelo de família, de privacidade e convivência social que conhecemos no Ocidente. Esse pensador é o sociólogo alemão Nobert Elias.
Tendo vivido a maior parte de sua vida no século XX, Elias descreveu sobre temas importantes e variados como cultura, civilização ocidental, sociedade de corte e formação dos Estados nacionais. Também descreveu um livro inteiro para falar sobre seus conterrâneos, os alemães. Com interesse debruçou-se sobre Wolfang Amadeus Mozart, músico famoso e genial do século XVIII. Os temas do esporte e da morte mereceram igualmente sua atuação.
As sociedades reveladas
Em todos os estudos e escritos de Nobert Elias predomina uma convicção: a de que as manifestações culturais,artísticas, culinárias, as maneiras de lidar com o sofrimento e com a alegria, tudo isso revela muito sobre as sociedades.Diante de uma manifestação como o esporte, por exemplo, ele se faz a seguinte pergunta:
"Que espécie de sociedade é esta onde as pessoas em números cada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quer como atores ou espectadores, em provas físicas e confrontos de tensões entre indivíduos ou equipes, e na excitação criada por estas competições realizadas sob condições onde não se verifica derrame de sangue, nem são provocados ferimentos sérios nos jogadores? (Nobert Elias e Eric Dunning no Livro: A busca da excitação, Lisboa: Difel, 1992).
Ao seu ver, uma atividade como o esporte emociona multidões, também acaba sendo reveladora do tipo de cultura e de sociedade que a incentiva e a incorpora em seu cotidiano. Trata-se de uma sociedade em que os intensos sentimentos coletivos que o esporte provoca são contidos por regras, normas e freios sem os quais o próprio esporte e a própria sociedade sucumbiriam.
Também a morte, na visão de Elias, é reveladora. As sociedades não lidaram sempre da mesma maneira com a morte, nos diz ele, porque ela não se reduz a um acontecimento biológico e natural. Acompanhar as mudanças no trato da morte nos revela muito, portanto, sobre as mudanças que as sociedades sofreram em seus costumes.
As sociedades urbano-industriais, por exemplo, criaram um ritual de morte particular: separaram a morte do ambiente doméstico. Os doentes terminais vão para o hospital, e o velório, assim como o enterro, não é mais feito em casa. Mas nem sempre foi assim. Na Idade Média, a morte era mais presente e familiar, cabia aos parentes cuidar no próprio de seus idosos enfermos, e ao mesmo tempo mais coletiva e violenta, basta lembrar os enforcamentos e torturas em praça pública, de que fala Foucault.
O livro em que Elias trata desse tema chama-se "A solidão dos moribundos", em referencia ao isolamento daqueles que estão no final da vida, são apartados de suas famílias e de suas casas, e entregues à tecnologia hospitalar e médica.
Elias é um sociólogo instigante, que compreendeu a sociedade como resultado de muitos processos, movimento do corpo e da alma, manifestações as mais diversas, Onde esperamos, lá está a sociedade sendo revelada parece nos dizer ele em cada um dos seus escritos. Entre seus livros, a grande parte dos quais já foi publicado no Brasil, um dos mais conhecidos é "O processo civilizador", talvez nessa obra em 2 volumes esteja sua tese fundamental. Principalmente no 1º deles intitulado: " Uma história dos costumes", Elias acompanha em detalhe a história dos costumes, nos diz ele, é uma boa pista para sabermos como a sociedade se pensa, se movimenta e é percebida. O exemplo que analisa nos ajudará a compreender a extensão do sonho de um dia termos uma tranquila vida doméstica.
Um manual que virou catecismo
Em uma história dos costumes, Nobert Elias volta ao ano de 1530 e nos oferece de presente o texto do filosofo renascentista horlandes" Erasmo de Rotterdam, que escreveu um pequeno tratado intitulado "Da civilidade em crianças". Assim que foi publicado o tratado teve enorme aceitação. Quanto mais se tornava conhecido, mais era procurado, como provam edições, em diferentes países da Europa, treze delas feitas no século XVIII. " Essa obra evidentemente tratava de um tema que estava maduro para discussão", diz Elias.
Mas, afinal, de que tratara o livrinho: Da civilidade em crianças? Como diz o título, de civilidade. O Manual discorria sobre as maneiras, a forma mais polida, mais contida, de se comportar diante dos outros, sobre o controle dos gestos, da postura, das expressões faciais, do vestuário. O que mostramos externamente diz muito do nosso interior, é o que quer ensinar Erasmo de Rotterdam às crianças, para que cresçam já treinadas quanto à maneira adequada de agir socialmente, na companhia de outras pessoas.
Nobert Elias reproduz o que estava escrito no manual de Erasmo, tão bem acolhido virou uma espécie de catecismo:
"Não deve haver meleca nas narinas(...). O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no braço ou no cotovelo.Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida, enxugando na roupa. É mais decente pegar o catarro em pano, preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o pé. O mesmo se aplica ao escarro(...) Erasmo de Roterddam, Da civilidade em crianças, 1530.
Outras recomendações, que hoje também soam engraçadas, aparecem no decorrer da obra: como se sentar ou soltar ventos". (os meninos devem " reter os ventos, comprimindo a barriga"). Há muito mais ainda: diz o autor que, antes de beber na caneca que outra pessoa passa, deve-se enxergar a boca, deve-se evitar passar para alguém a carne que está comendo, pois não é gentil oferecer alguma semimastigada: " mergulhar no molho o pão que mordeu é comporta-se como um camponês, demonstra pouca elegância, retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa em algum lugar (...)".
Nobert Elias trata o manual de civilidade como um documento, em testemunho de uma época que mostra um grande movimento de mudança. Dizendo o que não deveria ser feito, Erasmo nos expõe os costumes e valores de uma sociedade. Indicando como as crianças deveriam ser educadas revela o ideal de uma sociedade que deveria ser construída em moldes distintos dos até então conhecidos. Com Elias, portanto, percebemos na obra de Erasmo um duplo interesse sociológico: aprendemos sobre o presente indesejado e o futuro desejado, sobre a sociedade tradicional e a nova sociedade a ser construída sobre novas bases de relacionamentos.
Na citação que transcrevemos, a figura do camponês é associada a características e comportamentos que não devemos repetir. O que representa o camponês? A sociedade medieval, onde todo o trabalho se concentra no campo. Erasmo, portanto atribuiu valor negativo ao comportamento próprio de uma sociedade que não era a mais desejada e ao mesmo tempo aponta para outro tipo de sociedade, considerada mais desenvolvida, progressista e educada. E quanto ao presente? É exatamente esse presente, sempre em transição, o foco do interesse de Nobert Elias.
A sociedade do presente que interessava a Elias é a que floresceu em alguns países da Europa ocidental e disseminou uma maneira própria de se pensar, de se apresentar diante de outras, de se auto-olhar. nesses países desenvolveu-se uma idéia de civilização que obrigou homens e mulheres a mudar sua conduta no dia a dia. Um dos sinais de que estamos dentro desse longo processo civilizador é o estramento que sentimos quando lemos as recomendações de Erasmo em seu pequeno tratado " Não fica bem falar de coisas tão intimas", poderíamos argumentar, ou: " Não fica bem, nem é agradável, escrever sobre assuntos tão escabrosos e nojentos".
achar estranho, sentir constrangimento, achar nojento são sintomas de que já não estamos mais acostumados aos gestos que Erasmo recriminava. mas isso tem também repercussões mais profundas, ensina Elias.
Quando estranhamos maneiras de ser distintas das nossas que aceitamos e aprovamos, podemos ser tentados a definir nosso jeito de ser como bom, desejável, melhor, e classificar o que é diferente, distante, desconhecido, como ruim, atrasado, decadente, selvagem, rude. Olhamos o mundo a partir do que consideramos melhor, e o que consideramos melhor é o que nos acostumamos a ser, a ter, a saber. essa atitude de julgar o diferente a partir do que é nosso foi analisada por outros sociólogos e também por muitos antropólogos. É a origem de um dos conceitos mais importantes da antropologia: o etnocentrismo. vamos entender o que é isso?
Julgar os outros pelo próprio ponto de vista.
Você já deve ter ouvido, muitas vezes o comentários do tipo "aquele país é atrasado", "aquela cultura é decadente", "aquele grupo é selvagem", "aquele povo é bárbaro", "aquelas pessoas são inferiores" e outros na mesma linha. quando uma pessoa diz isso, está fazendo uma avaliação. Ela faz uma escala do melhor para o pior, de seu próprio ponto de vista, e com base nela emite seu juízo sobre o outro. Essa é uma atitude muito mais comum do que seria desejável do ponto de vista sociológico. Por quê? Porque estamos tomando o que é diferente não pelo que o faz diferente, mas pelo que o distancia daquilo que o grupo a que pertencemos considera melhor, ou mais evoluído, ou mais desenvolvido. Por que estamos qualificando a diferença como algo necessariamente ruim, ameaçador ou repugnante.
O conceito de etnocentrismo refere-se justamente a essa atitude de qualificar um grupo, uma cultura ou um país comparando-o à sua própria referencia, que é considerada melhor. A composição de palavra deixa isso claro: etn (o) - também está presente em etnia, que quer dizer cultura, e centrismo indica o centro de referencia para medir as demais por comparação. o antropólogo Everado Rocha assim explica o conceito de etnocentrismo: É uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definição do que é existência.
No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença, no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.
Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois , indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elemento emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano, sentimento e pensamento, vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigados na história das sociedades como também facilmente incontrolável no dia a dia das nossas vidas. Everado Rocha. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 1999.
Na maior parte das vezes, a atitude etnocêntrica implica uma desvalorização do que é diferente da nossa própria cultura. Consideramos bárbaro o que não nos é familiar, próximo do nosso jeito de ser, dos nossos valores, das nossas maneiras. O etnocentrismo indica que um determinado grupo étnico se considera superior a outro , já que o diferente é visto como inferior. Provoca uma atitude preconceituosa em relação ao diferente, e pode mesmo gerar gestos de incompreensão diante dos modos e comportamentos de outras culturas.
A xenofobia ( aversão ao estrangeiro) e o racismo (classificação dos povos segundo a raça e defesa da superioridade de uma delas) são exemplos desses possíveis desdobramentos. De tudo o que foi dito, podemos concluir que a atitude etnocêntrica reduz as diferenças quando define um determinado modelo como aquele que deve prevalecer. E mais além de reduzir as diferenças porque não as aceita, elege uma determinada visão do mundo, da cultura, de jeito de ser como aquela que deve ser universalizada, ou seja, que deve valer para todas as situações. Só é considerado aceitável aquilo que está de acordo com a concepção a partir da qual se está olhando. Em geral, o etnocentrismo se apoia em outra noção também muito poderosa: a de estereótipo. O estereótipo possui duas características básicas: é ao mesmo tempo generalizante e redutor. vejamos um exemplo. quando se diz: " todo brasileiro gosta de praia e futebol", se está acionando um estereótipo. Em primeiro lugar, nem todos os brasileiros gostam apenas de praia: e em segundo, os brasileiros não apenas de futebol. O mesmo argumento vale para muitos outros estereótipos: a do carioca malandro, o do judeu pão duro, o da loura burra.
Mas atenção; os estereótipos não precisam ser necessariamente negativos, assim como o etnocentrismo sempre coloca a própria cultura como superior. Um exemplo? É comum dizer que os norte americanos são patriotas e tecnologicamente desenvolvidos. Muitas vezes os próprios brasileiros comparam-se se a eles e usam a comparação para se auto-acusar de não serem patriotas ou suficientemente avançados. Quer sejam positivos ou negativos, elogiosos ou depreciantes, o etnocentrismo e os estereótipos remetem a relações de poder desiguais e hierarquizadas.
lembremos agora: a casa aconchegante e bem equipada, a ideia de uma vida confortável tudo isso faz parte de uma cultura que foi estimulada a partir do desenvolvimento do comércio e do consumo, e que passou a ocupar um lugar central em sociedades. O sonho de vida está portanto integrado ao que poderíamos chamar de sonho coletivo, usufruir das coisas de que a civilização dispõe no dia a dia e exibe em locais como lojas de departamento, galerias, feiras.
Monitorando a Aprendizagem
1- Com base nas informações que você recebeu, elabore uma definição para "civilidade". Cite exemplos:
2- O etnocentrismo, no Ocidente moderno, pode ser considerado um dos desdobramentos do processo civilizador . Consulte o verbete no final do livro, defina etnocentrismo com suas palavras e dê exemplo concreto
3- O que é estereótipo?
4- É possível conhecer uma sociedade a partir de seus costumes e de sua civilidade? Justifique a sua resposta.
As sociedades reveladas
Em todos os estudos e escritos de Nobert Elias predomina uma convicção: a de que as manifestações culturais,artísticas, culinárias, as maneiras de lidar com o sofrimento e com a alegria, tudo isso revela muito sobre as sociedades.Diante de uma manifestação como o esporte, por exemplo, ele se faz a seguinte pergunta:
"Que espécie de sociedade é esta onde as pessoas em números cada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quer como atores ou espectadores, em provas físicas e confrontos de tensões entre indivíduos ou equipes, e na excitação criada por estas competições realizadas sob condições onde não se verifica derrame de sangue, nem são provocados ferimentos sérios nos jogadores? (Nobert Elias e Eric Dunning no Livro: A busca da excitação, Lisboa: Difel, 1992).
Ao seu ver, uma atividade como o esporte emociona multidões, também acaba sendo reveladora do tipo de cultura e de sociedade que a incentiva e a incorpora em seu cotidiano. Trata-se de uma sociedade em que os intensos sentimentos coletivos que o esporte provoca são contidos por regras, normas e freios sem os quais o próprio esporte e a própria sociedade sucumbiriam.
Também a morte, na visão de Elias, é reveladora. As sociedades não lidaram sempre da mesma maneira com a morte, nos diz ele, porque ela não se reduz a um acontecimento biológico e natural. Acompanhar as mudanças no trato da morte nos revela muito, portanto, sobre as mudanças que as sociedades sofreram em seus costumes.
As sociedades urbano-industriais, por exemplo, criaram um ritual de morte particular: separaram a morte do ambiente doméstico. Os doentes terminais vão para o hospital, e o velório, assim como o enterro, não é mais feito em casa. Mas nem sempre foi assim. Na Idade Média, a morte era mais presente e familiar, cabia aos parentes cuidar no próprio de seus idosos enfermos, e ao mesmo tempo mais coletiva e violenta, basta lembrar os enforcamentos e torturas em praça pública, de que fala Foucault.
O livro em que Elias trata desse tema chama-se "A solidão dos moribundos", em referencia ao isolamento daqueles que estão no final da vida, são apartados de suas famílias e de suas casas, e entregues à tecnologia hospitalar e médica.
Elias é um sociólogo instigante, que compreendeu a sociedade como resultado de muitos processos, movimento do corpo e da alma, manifestações as mais diversas, Onde esperamos, lá está a sociedade sendo revelada parece nos dizer ele em cada um dos seus escritos. Entre seus livros, a grande parte dos quais já foi publicado no Brasil, um dos mais conhecidos é "O processo civilizador", talvez nessa obra em 2 volumes esteja sua tese fundamental. Principalmente no 1º deles intitulado: " Uma história dos costumes", Elias acompanha em detalhe a história dos costumes, nos diz ele, é uma boa pista para sabermos como a sociedade se pensa, se movimenta e é percebida. O exemplo que analisa nos ajudará a compreender a extensão do sonho de um dia termos uma tranquila vida doméstica.
Um manual que virou catecismo
Em uma história dos costumes, Nobert Elias volta ao ano de 1530 e nos oferece de presente o texto do filosofo renascentista horlandes" Erasmo de Rotterdam, que escreveu um pequeno tratado intitulado "Da civilidade em crianças". Assim que foi publicado o tratado teve enorme aceitação. Quanto mais se tornava conhecido, mais era procurado, como provam edições, em diferentes países da Europa, treze delas feitas no século XVIII. " Essa obra evidentemente tratava de um tema que estava maduro para discussão", diz Elias.
Mas, afinal, de que tratara o livrinho: Da civilidade em crianças? Como diz o título, de civilidade. O Manual discorria sobre as maneiras, a forma mais polida, mais contida, de se comportar diante dos outros, sobre o controle dos gestos, da postura, das expressões faciais, do vestuário. O que mostramos externamente diz muito do nosso interior, é o que quer ensinar Erasmo de Rotterdam às crianças, para que cresçam já treinadas quanto à maneira adequada de agir socialmente, na companhia de outras pessoas.
Nobert Elias reproduz o que estava escrito no manual de Erasmo, tão bem acolhido virou uma espécie de catecismo:
"Não deve haver meleca nas narinas(...). O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no braço ou no cotovelo.Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida, enxugando na roupa. É mais decente pegar o catarro em pano, preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o pé. O mesmo se aplica ao escarro(...) Erasmo de Roterddam, Da civilidade em crianças, 1530.
Outras recomendações, que hoje também soam engraçadas, aparecem no decorrer da obra: como se sentar ou soltar ventos". (os meninos devem " reter os ventos, comprimindo a barriga"). Há muito mais ainda: diz o autor que, antes de beber na caneca que outra pessoa passa, deve-se enxergar a boca, deve-se evitar passar para alguém a carne que está comendo, pois não é gentil oferecer alguma semimastigada: " mergulhar no molho o pão que mordeu é comporta-se como um camponês, demonstra pouca elegância, retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa em algum lugar (...)".
Nobert Elias trata o manual de civilidade como um documento, em testemunho de uma época que mostra um grande movimento de mudança. Dizendo o que não deveria ser feito, Erasmo nos expõe os costumes e valores de uma sociedade. Indicando como as crianças deveriam ser educadas revela o ideal de uma sociedade que deveria ser construída em moldes distintos dos até então conhecidos. Com Elias, portanto, percebemos na obra de Erasmo um duplo interesse sociológico: aprendemos sobre o presente indesejado e o futuro desejado, sobre a sociedade tradicional e a nova sociedade a ser construída sobre novas bases de relacionamentos.
Na citação que transcrevemos, a figura do camponês é associada a características e comportamentos que não devemos repetir. O que representa o camponês? A sociedade medieval, onde todo o trabalho se concentra no campo. Erasmo, portanto atribuiu valor negativo ao comportamento próprio de uma sociedade que não era a mais desejada e ao mesmo tempo aponta para outro tipo de sociedade, considerada mais desenvolvida, progressista e educada. E quanto ao presente? É exatamente esse presente, sempre em transição, o foco do interesse de Nobert Elias.
A sociedade do presente que interessava a Elias é a que floresceu em alguns países da Europa ocidental e disseminou uma maneira própria de se pensar, de se apresentar diante de outras, de se auto-olhar. nesses países desenvolveu-se uma idéia de civilização que obrigou homens e mulheres a mudar sua conduta no dia a dia. Um dos sinais de que estamos dentro desse longo processo civilizador é o estramento que sentimos quando lemos as recomendações de Erasmo em seu pequeno tratado " Não fica bem falar de coisas tão intimas", poderíamos argumentar, ou: " Não fica bem, nem é agradável, escrever sobre assuntos tão escabrosos e nojentos".
achar estranho, sentir constrangimento, achar nojento são sintomas de que já não estamos mais acostumados aos gestos que Erasmo recriminava. mas isso tem também repercussões mais profundas, ensina Elias.
Quando estranhamos maneiras de ser distintas das nossas que aceitamos e aprovamos, podemos ser tentados a definir nosso jeito de ser como bom, desejável, melhor, e classificar o que é diferente, distante, desconhecido, como ruim, atrasado, decadente, selvagem, rude. Olhamos o mundo a partir do que consideramos melhor, e o que consideramos melhor é o que nos acostumamos a ser, a ter, a saber. essa atitude de julgar o diferente a partir do que é nosso foi analisada por outros sociólogos e também por muitos antropólogos. É a origem de um dos conceitos mais importantes da antropologia: o etnocentrismo. vamos entender o que é isso?
Julgar os outros pelo próprio ponto de vista.
Você já deve ter ouvido, muitas vezes o comentários do tipo "aquele país é atrasado", "aquela cultura é decadente", "aquele grupo é selvagem", "aquele povo é bárbaro", "aquelas pessoas são inferiores" e outros na mesma linha. quando uma pessoa diz isso, está fazendo uma avaliação. Ela faz uma escala do melhor para o pior, de seu próprio ponto de vista, e com base nela emite seu juízo sobre o outro. Essa é uma atitude muito mais comum do que seria desejável do ponto de vista sociológico. Por quê? Porque estamos tomando o que é diferente não pelo que o faz diferente, mas pelo que o distancia daquilo que o grupo a que pertencemos considera melhor, ou mais evoluído, ou mais desenvolvido. Por que estamos qualificando a diferença como algo necessariamente ruim, ameaçador ou repugnante.
O conceito de etnocentrismo refere-se justamente a essa atitude de qualificar um grupo, uma cultura ou um país comparando-o à sua própria referencia, que é considerada melhor. A composição de palavra deixa isso claro: etn (o) - também está presente em etnia, que quer dizer cultura, e centrismo indica o centro de referencia para medir as demais por comparação. o antropólogo Everado Rocha assim explica o conceito de etnocentrismo: É uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definição do que é existência.
No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença, no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.
Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois , indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elemento emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano, sentimento e pensamento, vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigados na história das sociedades como também facilmente incontrolável no dia a dia das nossas vidas. Everado Rocha. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 1999.
Na maior parte das vezes, a atitude etnocêntrica implica uma desvalorização do que é diferente da nossa própria cultura. Consideramos bárbaro o que não nos é familiar, próximo do nosso jeito de ser, dos nossos valores, das nossas maneiras. O etnocentrismo indica que um determinado grupo étnico se considera superior a outro , já que o diferente é visto como inferior. Provoca uma atitude preconceituosa em relação ao diferente, e pode mesmo gerar gestos de incompreensão diante dos modos e comportamentos de outras culturas.
A xenofobia ( aversão ao estrangeiro) e o racismo (classificação dos povos segundo a raça e defesa da superioridade de uma delas) são exemplos desses possíveis desdobramentos. De tudo o que foi dito, podemos concluir que a atitude etnocêntrica reduz as diferenças quando define um determinado modelo como aquele que deve prevalecer. E mais além de reduzir as diferenças porque não as aceita, elege uma determinada visão do mundo, da cultura, de jeito de ser como aquela que deve ser universalizada, ou seja, que deve valer para todas as situações. Só é considerado aceitável aquilo que está de acordo com a concepção a partir da qual se está olhando. Em geral, o etnocentrismo se apoia em outra noção também muito poderosa: a de estereótipo. O estereótipo possui duas características básicas: é ao mesmo tempo generalizante e redutor. vejamos um exemplo. quando se diz: " todo brasileiro gosta de praia e futebol", se está acionando um estereótipo. Em primeiro lugar, nem todos os brasileiros gostam apenas de praia: e em segundo, os brasileiros não apenas de futebol. O mesmo argumento vale para muitos outros estereótipos: a do carioca malandro, o do judeu pão duro, o da loura burra.
lembremos agora: a casa aconchegante e bem equipada, a ideia de uma vida confortável tudo isso faz parte de uma cultura que foi estimulada a partir do desenvolvimento do comércio e do consumo, e que passou a ocupar um lugar central em sociedades. O sonho de vida está portanto integrado ao que poderíamos chamar de sonho coletivo, usufruir das coisas de que a civilização dispõe no dia a dia e exibe em locais como lojas de departamento, galerias, feiras.
Monitorando a Aprendizagem
1- Com base nas informações que você recebeu, elabore uma definição para "civilidade". Cite exemplos:
2- O etnocentrismo, no Ocidente moderno, pode ser considerado um dos desdobramentos do processo civilizador . Consulte o verbete no final do livro, defina etnocentrismo com suas palavras e dê exemplo concreto
3- O que é estereótipo?
4- É possível conhecer uma sociedade a partir de seus costumes e de sua civilidade? Justifique a sua resposta.